domingo, 8 de agosto de 2010

Dos chupões ou Da anta que mora em todos nós




Vou te matar aos pouquinhos.
Começar pela unha do teu mindinho esquerdo. E cortarei tuas unhas da sua esquerda para a direita dos pés. Da minha direita para a esquerda dos seus pés. E guardarei tuas unhas e só tuas unhas como lembrança já que as unhas têm todas o inevitável destino de se esvaírem com o tempo e se transformarem em uma matéria qualquer ainda não encontrada ou até conhecida pelos homens. Elas simplesmente se vão. Então as guardarei como lembrança.
Depois matarei teus pés com bolhas, as canelas com o inchaço do diabete, os joelhos com as articulações falhas e as coxas com chupões condenáveis por qualquer pai que tenha amor, ciúme e severidade violenta com sua filha.
Do quadril, os ossos frágeis que se quebram no primeira sentar e na vagina, eu só poderia descrever como as fotos que permearam minha infância vistas naquela exposição dos estudantes de medicina sobre DSTs. Tudo que poderia lembrar é que elas não eram agradáveis.
A barriga vem com vermes em seu interior e a cicatriz da apendicite mal curada. Teus braços com as gorduras de quem tem vergonha de dar tchau pelo movimento balançante ocasionado. O pescoço com torcicolo e a cabeça com piolhos e espinhas.
Te matarei aos pouquinhos porque não tenho coragem de te roubar o coração de uma vez só. Te matarei aos pouquinhos porque com todo o meu sadismo, ainda vou ter vontade de te cuidar, levar ao hospital e te querer no meu colo com toda a culpa de ter desejado isso. E quando morreres sentirei a culpa de ter te matado e nunca mais poderei tê-la de volta. Vou me apegar então às unhas que terão desaparecido misteriosamente do meu armário e suas lembranças terão ido embora. E somente por culpa minha, pois se não tivesse matado você aos pouquinhos, mataria a minha saudade com você viva por inteiro.
Mas ao mesmo tempo te ver viva por inteiro e ver que seu inteiro não precisa mais do meu pedaço para se sentir inteiro irá me matar aos pouquinhos. E quererei te matar aos pouquinhos para que morras junto comigo.
E ainda assim morreremos sozinhos? Quem no final das contas cuidará de quem?
Eu morrerei com minha culpa debaixo de meus lençóis.
E você, com a inocência.